Ó abre-alas que eu quero passar
Justificativa
Abram alas para a folia!
O Carnaval é o festejo feito pelo povo e para o povo com o propósito da diversão por meio do
escapismo da realidade cotidiana. Nesses dias, quase tudo é permitido. Vale sair pelas ruas vestindoroupas que jamais seriam usadas no dia a dia, ser outra pessoa, esquecer a transgressão e fazer comque ela seja a ordem reinante. É quando o bom-humor aflora, consentindo o riso emoldurado no rosto,imprimindo-lhe um saudável aspecto de grandeza e da mais pura felicidade.
Ser folião é um estado de espírito. Mas espírito do bem, daquele que traz alegria e permite que a pessoa viva intensamente momentos únicos com o próximo. Cada momento desses é singular, fugaz e irrepetível, acalenta a alma e nos torna mais humanos, mais inseridos na sociedade, ainda que a folia seja uma espécie de mundo dos sonhos, onde se enxerga encanto em tudo.
Brincar Carnaval pode ser traduzido em se lambuzar de arte, em mergulhar na manifestação cultural de um grupo, no rito de uma coletividade que se enfeita, se cobre de animação para se esbaldar no divertimento, cantando e dançando em celebração festiva ao deus Momo.
Por isso, a rua se constitui como o melhor espaço para a realização da festa carnavalesca, pois ela éde cada um, é de todos, é do povo. A rua é aberta, compartilhada por encontros, e induz à liberdade de sonhar do folião, aos devaneios quixotescos de todos nós, dela nos valendo para nos colocar artisticamente em público, em busca de comunhão e da esperança de um mundo mais fraterno, no qual o real e o ilusório se fundem no êxtase do corpo e do espírito.
E hoje, para resgatar a essência da folia popular de Porto Alegre, a Escola de Samba Bambas da Orgia enche as ruas de gente feliz. Anônimos, desconhecidos, amigos e familiares que, juntos e irmanados na glória das tradições gaúchas, se tornam foliões no período carnavalesco para fazer da vida uma grandefesta de esplendor, magia e encantamento ao ar livre.
Seguindo este mote, os bambas da Bambas contam a rica história do carnaval de rua de Porto Alegre,fazendo da Passarela do Samba uma passarela de imaginação, na qual desfilarão, em fantasias, as diversasmanifestações carnavalescas que permearam a cultura momesca de nossa querida capital.
Setor I
Loucuras supremas e gargalhadas retumbantes!
Senhoras e senhores: abram alas para os inesquecíveis personagens da trupe de artistas das farsas apresentadas nos bailes mascarados do Teatro São Pedro no período carnavalesco de 1875.
O espetáculo vai começar! Com vocês: João Pimpão, tocador de zabumba; Joaquim Madruga, tocador de clarineta; Manoel Ferreira, assoprador de fagote; Joana Perereca, criatura virtuosa e encantadora, e Chico da Venda, o representante da opinião pública.
Esses e tantos outros personagens retratavam uma alegoria momesca chamada Disparates do Carnaval,que nos remete à visão poetizada de um carnaval de rua muito especial, criado na espontaneidade e na ilusão colorida do povo porto-alegrense. Essa maneira de brincar o Carnaval pelas ruas da cidade somatiza as imagens de um caleidoscópio de culturas e nos enche a alma de uma saudade romântica.
Ó abre alas que eu quero passar! Quero passar com o entrudo que chega trazido na bagagem dos
primeiros casais açorianos que fundaram o então povoado Porto de Viamão, com muita sujeira feita por limões de cheiro, pó, vinagre, vinho e muita farinha.
Quem te viu e quem te vê! Escreve o cronista Gil Vicente defendendo os bons modos e a civilidade do Senhor Carnaval nas páginas do Correio do Povo. Pelos jornais se criticava a forma espontânea e popularesca do Senhor Entrudo, que tomava as ruas e as casas sem cerimônia para fazer arrojados chistes e molhadelas de mil cheiros diferentes.
A última moda do ano de 1877, lançada pelos maiores comerciantes locais, era jogar o entrudo
usando as caras bisnagas francesas, pelas quais apenas a elite podia pagar. Os menos favorecidos – conhecidos pela denominação Zé-povinho – utilizavam seringas médicas para participarem dessa diversãocarnavalesca que tinha a adesão de todos, num improviso criativo e bastante econômico.
De um simples esguicho de um limão de cera podia nascer a semente de um grande amor entre moças e rapazes. Assim, brincar o entrudo usando bisnagas e limões feria, e muito, a rígida moral dos pais, porém, por outro lado, servia como pretexto para acender o proibido amor dos jovens, disfarçando as verdadeiras intenções dos rapazes. Um amor um tanto molhado e mal-cheiroso, mas um amor. Afinal, o caminho para conquistar o coração das moçoilas era o banho de cheiro dado com esses objetos de galanteios, dele brotando o amor molhado da juventude.
Setor II
Mascarados exuberantes e sociedades magníficas Ó abre alas que eu quero passar com animados foliões de rosto encoberto disfarçando suas identidades para brincar o Carnaval. Nesses anos da década de 1870 andam pelas ruas indivíduos mascarados apoquentando as famílias tradicionais com a pergunta - Você me conhece? Esses foliões disfarçados além
de assombrarem as pessoas com seus chistes usam suas fantasias para esconder todo tipo de degenerados.
Por isso, as autoridades passam a proibir o uso de máscaras na época carnavalesca.
As mais comuns são a caveira, o diabo, a morte, o morcego, o velho, o príncipe, o mandarim, o rajá e o marajá, além dos tradicionais personagens dominó, pierrô, arlequim e colombina. Em outra parte da cidade a folia se materializa nos bailes de rua promovidos no Teatro-Parque, ao som de orquestras memoráveis e de uma sofisticação caprichada nos detalhes. Este recinto teatral é o refúgio das famílias elegantes que exibem com orgulho seus luxuososchicards (fantasias ricas derivadas da corruptela chic), a moda em voga na Corte carioca.
Outras belas fantasias que tomam as ruas neste período carnavalesco e se destacam nesse tempo são os Musterreitz, vestindo trajes esmerados representando cavaleiros caixeiros-viajantes alemães. Muito peculiar era a recepção festiva ao deus Momo no trapiche da Praça da Alfândega, realizada por alunos do Colégio Militar e animada por zés-pereiras, e que terminava num grande comício burlesco, com foguetórios, disparatados discursos e muita bebedeira para parodiar com humor e crítica os políticos da cidade.
Ó abre alas que eu quero passar! Passar com as grandes sociedades que foram criadas com
o propósito de acabar com o entrudo, considerado pela imprensa como uma questão de saúde pública.
Em 1873, foram fundadas as tradicionais e gloriosas Sociedades Carnavalescas Esmeralda e Venezianos.
Elas chegaram às ruas com toda força para mudar a cara do Carnaval gaúcho. A batalha das molhadelas é substituída pelas batalhas das flores e dos confetes.
As sociedades tinham a intenção de passar a imagem do bom gosto, do refinamento e da sofisticação.
E os porto-alegrenses queriam estar inseridos nesse contexto, acabando com a indecência e a brutalidade próprias dos hábitos entrudescos. Essas sociedades, inspiradas no Carnaval da Corte brasileira e de cidades europeias, realizavam bailes de gala no Teatro São Pedro e aclamados préstitos de fantasiados em carros alegóricos pelas ruas da capital riograndense, com moças de família se exibindo triunfalmente nesses cortejos.
Os garbosos esmeraldinos e venezianos abordavam temas fantasiosos e suas alegorias continham
referências da mitologia grego-romana.
Setor III
Fascinantes batuques negros e desfiles motorizados colossais
Uma característica de destaque na cultura local são as influências deixadas pelos imigrantes alemães e seus descendentes na região. Esta colônia contribuiu com o Carnaval de rua organizando em 1879 os cortejos da admirável Sociedade Germânia, composta por bailes à fantasia, desfile de carros alegóricos com o príncipe e princesa do Carnaval, grupos de cavaleiros e bandas de música.
Uma característica de destaque na cultura local são as influências deixadas pelos imigrantes alemães e seus descendentes na região. Esta colônia contribuiu com o Carnaval de rua organizando em 1879 os cortejos da admirável Sociedade Germânia, composta por bailes à fantasia, desfile de carros alegóricos com o príncipe e princesa do Carnaval, grupos de cavaleiros e bandas de música.
Ó abre alas que eu quero passar! Quero passar com a negritude que retumba nos atabaques de culturas impregnadas de belas tradições africanas dos grupos organizados que saíam com seus préstitos às ruas da capital gaúcha. De 1877 a 1884 um desses grupos se destaca: era a Sociedade Carnavalesca Congo, que apresentava um rei africano e sua corte num fulgurante passeio público e muito lutou pela libertação dos escravos, apresentando-se em teatros em prol da alforria dos negros.
Outra marcante era a Sociedade Floresta Aurora, surgida em 1879, composta por negros libertos, que faziam grandiosos passeios burlescos à fantasia pelo Centro da cidade, em carros iluminados por fogos -de-bengala.
Ó abre alas que eu quero passar com os ranchos e cordões! A maioria deles formados por grupos de negros tocando instrumentos de percussão que visitavam as casas nas madrugadas do Dia dos Santos Reis, fechando as comemorações natalinas, os chamados Ternos de Reis.
Os negros também se organizavam nos denominados Clubes, como os das Bahianas e de Benghela, que desfilavam pelas ruas com instrumentos musicais cantando músicas compostas pelos participantes do grupo, em geral, com versos que buscavam reproduzir a cultura africana. Essas sociedades, cordões e clubes buscavam imprimir nessa camada da população uma identidade étnicocultural.
Somo gente destorsida
Da terra dos areá
Onde o sol faix mixida
Cumo as pimenta de cá
Ó abre alas que eu quero passar com o corso, outra variante de celebração do Carnaval em Porto Alegre, com automóveis sem capotas enfeitados percorrendo as ruas principais, repletos de foliões atirando confetes, serpentinas e lança-perfume uns nos outros. Essa maravilhosa brincadeira automotiva era de exclusividade da elite porto-alegrense possuidora de veículos.
Setor IV
Célebres recordações de modernas tradições gaúchas
Ó abre alas que eu quero passar com as bandas carnavalescas Comigo Ninguém Pode, DK, Medianeira, Por Causa de Quê, JB, Filhos da Candinha, Areal da Baronesa e Saldanha Marinho, entre outras, que já no século passado, nas décadas de 1970 e 1980, animavam os dias de folia de nossa cidade. Umas desapareceram e outras viraram algumas de nossas amadas escolas de samba.
A tradicional Banda da Saldanha Marinho, que simplificou o nome para Banda Saldanha, resiste
vitoriosamente e atrai um mar de eufóricos foliões, fervilhando as ruas centrais de nossa cidade. Reunindo pessoas tão diferentes e de todas as gerações, teve, entre os importantes personagens de sua história, a Porta-Estandarte Nega Lú, um artista transformista respeitadíssimo, que possuía uma legião de fãs e era a cara do Carnaval de rua.
Ó abre alas que eu quero passar com o memorável Carnaval da PEPSI das décadas de 1950 e 1960, quando a empresa pioneira de refrigerantes investia no Carnaval de Porto Alegre, ajudando grupos carnavalescos, imprimindo-lhes uma identidade e tornando os desfiles mais pomposos. A Avenida Borges de Medeiros, onde ocorriam os préstitos, era toda enfeitada de azul e vermelho, com propagandas da Pepsi, que se tornou o refrigerante preferido da população.
Ó abre alas que eu quero passar com as Tribos Carnavalescas que há muito dão um brilho especial ao nosso Carnaval. Uma das manifestações carnavalescas mais originais, fruto da riqueza cultural de nosso povo. Possuem um visual único, com os brincantes usando fantasias de fartas penas coloridas, tacapes, lanças, arco e flecha, numa profusão de cores.
A bateria de cada uma trazendo agês e tambores dando o ritmo musical dos desfiles e o bandeirista empunhando com orgulho o símbolo das tribos Tapajós, Aymorés, Comanches, Charruas, Arachaneses, Xavantes, Bororós, Tapuias e Goianazes, encantando a entusiasmada assistência.
Muitas deixaram profunda saudade, mas as tribos Comanches e Goianazes ainda resistem ao desfile espetáculo das escolas de samba, se apresentando no Porto Seco e disputando o campeonato entre si, mantendo viva essa antiga tradição da cultura gaúcha.
Setor V
Folias esplêndidas de gaúchos bambas
Ó abre alas que eu quero passar com os blocos que arrebatam multidões! Os mais antigos eram os blocos humorísticos de tom satírico à política local que saíam às ruas marcando os anos dourados de nossa folia. Com nomes engraçados, como o Cal... das Catacumbas, Rei da Pândega, Bloco Nhô, O que Sobrou da Luta, Canela de Zebu, Tô Com a Vela, Te Arremanga e Vem, Saímos Sem Querer, Os Tesouras, Banda Filarmônica do Faxinal (cujos instrumentos musicais eram feitos de bacias, chaleiras, urinóis, pedaços de chaminés e outras quinquilharias) e Tira o Dedo do Pudim, entre outros.
À semelhança de João Pena e Lupicínio Rodrigues, Horacina Corrêa era capaz de atrair a atenção da imprensa e do público, conferindo visibilidade e publicidade aos blocos. Muitos destes eram esperados pelos foliões que se espremiam em volta dos coretos onde os blocos faziam suas deliciosas fanfarrices.
Alguns foram proibidos na década de 1970 por fazerem críticas às autoridades.
Ó meu amor, não faz assim
Eu sou o bloco Tira o Dedo do Pudim!
O bloco Tira o Dedo do Pudim, um dos mais engraçados, foi fundado em 1946 e seus participantes assumiam o compromisso de não beber nem fumar durante o Carnaval, para valorizar a alegria espontânea. Era comandado pelo mitológico Vicente Rao, que se tornou um dos mais consagrados Reis Momo de Porto Alegre junto com Lelé, o primeiro Rei Momo negro.
Por falar nisso, a Escola de Samba Bambas da Orgia é originária do Bloco Carnavalesco Os Turunas.
Foram seus antigos integrantes que tiveram a ideia de criar a agremiação, começando como Grupo Carnavalesco e, com o tempo, se transformando numa das escolas mais queridas de Porto Alegre.
Ó abre alas que eu quero passar com as Muambas, outra exclusividade da folia de Porto Alegre,
evento que, anos antes, consistia em ensaios de blocos e escolas onde se carregava aberto o pavilhão da agremiação para arrecadar fundos para o desfile, pois as pessoas jogavam dinheiro para colaborar.
Atualmente, com outras características, a Muamba consiste num ensaio geral de todas as manifestações carnavalescas que dá uma prévia do que será apresentado no desfile oficial.
Hoje rendemos homenagens a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuíram para a
formação cultural das festividades carnavalescas de Porto Alegre. Todos são protagonistas na história de nosso Carnaval, que teve início com os bambas da rua, formando agrupamentos numa torrente de alegria em busca do prazer e da diversão.
É com esse espírito de festejar o grandioso passado de nossas celebrações carnavalescas que a Escola de Samba Bambas da Orgia ganhará o Sambódromo com o enredo “Ó Abre Alas, Que Eu Quero Passar”, mostrando a arte de reverenciar o belo no Carnaval.
Severo Luzardo e Julio Cesar Farias